Nunca havia rezado de verdade em minha vida. Durante minha infância fiz primeira comunhão e lembro-me de ser uma boa aluna, de até ler textos durante as missas. O frisson de fazer algo em público sempre me atraiu, a tensão durante os minutos em que se quer falar mas não se tem coragem, a brincadeira com o próprio medo, falo não falo, em que momento entro?, até a ação em si, que é emoção pura, coração, presença. Passaram-se alguns domingos de missas, alguns pai nossos antes de dormir, o sinal da cruz antes de passar em frente a qualquer igreja, a oração a alguma santa que fazia antes de dirigir, até que todos esses processos, rituais ou simplesmente rezas sumissem do meu dia a dia.
Estava eu em minhas férias espirituais em uma comunidade na Costa Rica, indagando-me sobre minha incapacidade de rezar. Pensava, sou tão naturalmente abençoada, tenho tudo que preciso, o que mais devo pedir?… E o pior, a quem?… Foi durante um dos discursos de Osho que escutei durante um processo que boooooom, ecoou longe e fez lágrimas caírem imediatamente. Instantâneas. To pray is to be grateful. O ego era demasiado grande para permitir um ato de humildade.
A cada dia que passava por lá, a natureza fazia mais parte da minha vida, me assustava cada vez menos e gerava uma sensação de agradecimento por tudo que estava vivendo. Sentia a gratitude de estar bem onde estava. Eu, que apesar de transpirar calma exterior sentia constantemente a tal da insatisfação, que por um lado impulsiona novas ações e por outro faz das nossas vidas uma interminável infelicidade.
Em meio aos processos que mergulhei durante os dois meses que fiquei por lá chegou a tal da Cura, 3 noites de Ayauasca, 6 copos por noite, estrutura do Santo Daime (mulheres de um lado, homens de outro, todos de branco, canções do hinário). Estava eu em tal comunidade falando em inglês noite e dia, cercada de estrangeiros e de repente me sento em roda a cantar músicas em português? E o pior, falando de Maria, de fé, de Jesus, de amor, de confiança? Uma noite, duas noites, na terceira, boooooom, juro, estava com o punho cerrado cantando confia, confia, confia.
Foi a primeira vez que rezei na vida. O coração aberto pelo divino chá me fez ver a beleza daquelas palavras e a profundidade da palavra em si. Desses ecos de vibração que emanamos, ecos de intenção, que ao serem entoados, se tornam eternos. Humildemente entendi que estava pedindo, dando, agradecendo, rezando pelo amor, pela vida, pelos humanos, pelo divino. Wow, primeira vez que rezei. Foi deep.
Inaugurou-se então esse novo espaço na minha vida para os rituais, para a minha voz interior expressar amor próprio e aos outros, respeito próprio e aos demais. Estava feliz com minha iniciação e de certa forma confiante. Outros processos vieram e cada vez abro mais uma brecha em direção à potencia do universo. E que potência… Capaz de jogar fora até mesmo os novos conceitos que pouco a pouco vão substituindo os antigos. Até mesmo os novos, os espirituais, os amorosos que em teoria são mais valiosos… e reconstroem nosso ego, vem a vida e, boooooom novamente.
Brasil, Peru, México, Guatemala, Costa Rica, Brasil, Canadá, NY, México. Apenas quatro meses apos ter ido ao México lá estava eu novamente para participar de uma cerimônia indígena. Durante a preparação para a viagem fiz rezas para as quatro direções com minhas intenções, foi um lindo processo em que refiz alguns caminhos da minha história, como pedir perdão aos meus avós por julgamentos que havia em algum momento feito, ligando os elementos da natureza e seus poderes sobre a terra e os humanos, com velas, tabaco, fogo e muita emoção por estar me permitindo tocar tudo aquilo.
Eram quatro noites de danças e cantos, quase sem comer, com dois temascales diários, 140 mulheres, lua cheia, full Power! Cada dia que passava me sentia mais parte do processo, com mais envolvimento, mais segura, relembrando as intenções que levei até lá. Na terceira noite, enquanto dançávamos, de repente vi uma luz de lanterna e um homem correndo apressado, até que ele soltou tiros no ar e mandou todas nós deitarmos no chão. Sim, era um assalto e estávamos sendo feitas reféns. Ficamos cerca de 3 horas reféns de 8 homens armados e, boooooom, nunca rezei tão profundamente na vida…
Toda a minha coragem, todas as minhas intenções, toda a inquietude, os desejos, os anseios, as infelicidades, tudo foi por água abaixo e eu só queria estar viva. Como nunca antes havia sentido. Foi minha primeira experiência com o desespero, com o medo real da morte, da dor, do abuso, da polaridade no mundo. Foi minha primeira experiência real de valoração da vida. Entendi pela primeira vez ao menos uma das profundidades da violência em que o mundo está imerso atualmente. Vivenciei na pele porque muitas famílias de judeus não reagiam durante os aprisionamentos. Senti pela primeira vez na carne que éramos um corpo só que pulsava sobre a terra, que respirava junto, formando um manto branco sobre a superfície que então estava rodeada por sombra. Nem deles consegui me afastar, eu rezava por eles, rezava para que suas ações fossem o menos danosa para si mesmos, que eles pudessem curar suas ações em vida.
Pela primeira vez não enfrentei uma situação em minha vida. Não tinha coragem de levantar a cabeça e olhar o panorama ao redor, seus passos, suas ações, seus corpos. Somente rezava. Naquele momento não havia dúvida, conceito, religião, indagação. Eu apenas rezava. E novamente, pela primeira vez.