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Foram três dias de procissão acompanhando as integrantes da Irmandade da Boa Morte. Inicialmente eram ligadas à libertação de escravos através da compra de cartas de alforria, ao mesmo tempo que velavam para que o corpo daqueles que à Irmandade buscavam tivesse um velório apropriado. Para validar socialmente seus feitos, aproximaram-se da igreja católica e passaram a venerar a Nossa Senhora, mãe de todos. A celebração Cachoeirana pública acontece sob a tutela cristã, enquanto nos quintais de cada uma são os tambores e os rituais africanos a expressarem suas crenças.

É sob esse crash, confronto e contraste que a festa se dá, e esse também é o ponto fundador para quem vem em busca dessa força de fé afro brasileira, único pais, segundo as integrantes, a celebrar a páscoa de Nossa Senhora. Pois bem, são senhoras, negras, avós, mães de santo, lideres comunitárias a carregar a alva, pura, santificada e virgem mãe de todos.

São as mulheres que dão a vida, cuidam da humanidade e ainda encaminham as almas dos mortos. Senhoras de 60 a mais de 100 anos caminhando pelas ruas de paralelepípedo da cidade, sob chuva, flashes impetuosos e olhares de admiração. Hoje foi o dia que representou a ascensão de Nossa Senhora, chamada então não mais de Boa Morte, mas de Glória. O dia mais cheio, com autoridades do Estado, turistas a se divertir pelas ruas e o povo a provar mais uma vez seus atos de fé.

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Ontem descobri que meu nódulo na tireóide se alterou, que terei que fazer uma punção para verificar se ele é benigno ou não, e passei a querer acreditar que não há nada. Hoje, ao ver os fiéis de mãos para os céus, olhar compenetrado e palavra firme, entendi que há algo que busco nessas aventuras religiosas que percorro, que é a fé. A fé de acreditar em algo. Firmemente. Sem titubear. E passei a pensar sobre a tal da fé. Para mim ela é uma forma de fortaleza interna que me ampara nas decisões que tomo. E para tomar decisões é preciso ter um rumo e uma direção. Um. Não vários. Se dispersa, se enfraquece. Mas se foca, se reúne mais poder.

Quarta-feira dia de meu Orixá Iansã, a Dona dos Espíritos. Acendo vela e incenso no quarto pedindo para seu poder minha fé tutelar. Termino a jornada em canto para Nanã, mãe do mundo, em homenagem à Mateus Aleluia que abençoou meu violão esse sábado. Da fé é que vem o meu axé.

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Agosto 16, 2012 · 2:06 am

Flor do milho

Preciso revelar que na verdade vim parar em Cachoeira para acompanhar os festejos da Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte. Essa Irmandade cultua Nossa Senhora, única celebração no mundo ao personagem feminino maior do catolicismo, nos moldes da páscoa do Cristo. Por uma semana as mulheres se reúnem em cortejo à imagem da Santa, passando pela sua ascensão ou Glória e terminando em samba de roda e festejos gastronômicos. Para tristeza da comunidade, Dona Estelita, Juíza Perpétua da Irmandade, faleceu essa semana, assim como a mãe de santo Dona Madalena, do terreiro Guarany de Oxossi. Duas figuras centrais da comunidade local, cujo trabalho vai além de suas crenças espirituais, atingindo a população em questões gerais.

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Há um clima de luto no ar e os diálogos se tornaram ácidos, difíceis, impacientes. Hoje foi a missa de sétimo dia da Mãe Madalena e eu fui quase forçada a ir lá ver de perto uma missa de sétimo dia na igreja do Rosarinho para uma mãe de santo cujo terreiro fica no quarteirão de trás do palácio cristão. Apesar de me interessar pela morte com afinco, é um tema muito delicado e eu não tenho receio de me  intrometer  em processos muito íntimos. Mas insistiram. E eu fui. Só.

Cheguei ao terreiro, única forasteira, no momento de luto do grupo, querendo ser apenas uma mosca enquanto meus 1,76 alvos de cabelo castanho escorrido na Bahia me davam a proporção de um dinossauro. Me avistaram e me acolheram tão bem que eu fiquei completamente envergonhada. Sentei e fiquei observando o que acontecia. Quando uma mãe de santo morre, o terreiro entra num luto que dura no mínimo 1 ano. Eu, que venho de uma tradição católica, não poderia conceber um grupo que se organizasse sem a presença de um padre, seja ele quem for. A idéia de um luto longo me pareceu adequada a refletir sobre o significado do trabalho feito naquele espaço e do sentido que o caminho deveria tomar. A morte estabelece a idéia de ciclo, e gestar demanda um tempo.

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A presença da religiosidade Africana na Bahia é inebriante e aos poucos vou me encantando pelos significados da presença de objetos, ritos, cores, estruturas e crenças. Foi numa dessas indagações que me surgiu a pergunta, porquê a pipoca é comida de santo? Pipoca é a comida de Obaluaiyê e deve ser estourada numa panela com areia. A imantação da pipoca é a de uma flor branca. A pipoca é a flor do milho, que a tantas culturas e a tantos povos por tanto tempo foi a base da alimentação. Que lindo imaginar uma comida de flores brancas, me apaixonei.

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Vida peregrina

Quando achei que minha vida de peregrina estava me deixando, caí de novo na estrada. Não que eu estivesse no mesmo lugar, foi um ano e meio intenso entre Paraty, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São Paulo, Distrito Federal, Rio Grande do Sul, Santa Catarina além de México e Nova Iorque. Quando muito, passei dez dias sem me mover. Normalmente, semanalmente, constantemente, eram no mínimo 2 estados brasileiros por semana.

Terminei uma pós-graduação em Cinema Documentário na FGV-RJ, me despedi dos meus irmãos Sid e Tina que me acolheram semanalmente no Rio de Janeiro, passei as chaves de Paraty para a minha xará Thais e vim parar em Cachoeira, cidade central da cultura Bahiana, situada no Recôncavo. Dessa vez, sem data pra retornar a algum lugar chamado casa, carrego violão, roupa de frio, todos meus equipamentos fotográficos e fílmicos, e a sensação cada vez maior de viver um eterno fluxo de informações, esponja e mensageira, olheira e cuspideira, brasileira e estrangeira.

Tento me ater a algo que consiga me identificar, como por exemplo minhas raízes. Essa cidade de casarões coloniais, ruas de paralelepípedos, morros, sobre meu olhar mineiro, à beira do rio Paraguassu, tem tempero bahiano. São as peles de turmalina, as cores femininas das paredes das casas, o cheiro de coentro e a textura seca dos bijus que me dizem, mulher, tu aqui, melhor cheirar como as bahianas.

Fico admirando os corpos de meninas na rua, pernas compridas de corpo longilíneo, as negras jovens têm curva de perfil. De frente, são como as esculturas de madeira dos artistas locais, que seguem o veio dos troncos de Jenipapo ou das Jaqueiras. A gente vai subindo o olhar e descobrindo os detalhes. Das negras amadurecidas, de mãos fortes e pés fincados no chão, compartilho a mineirice do olhar desconfiado àquela menina estrangeira que vem aqui encontrar não sei o quê. Não tem nada aqui não, é a sensação que me dão. Relembrando a mim mesma, não tenho pressa, já corri demais, já vi um tanto, e já sei que para aprender é preciso viver. Sigo indo e voltando, esperando e largando, perguntando e sorrindo.

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Dos absurdos aos quais nos submetem(os).

Estava eu numa mesinha de lanchonete esta manhã de quinta-feira quando uma pedinte discretamente se aproximou solicitando dinheiro para um cafezinho. Estiquei o diálogo com a seguinte pergunta:

-Você quer um café curto, longo ou com leite?

-Com leite.

Respondeu a senhora.

Continuei.

-Você vai tomar o café aqui, perto de casa ou em alguma parada da estrada?

-Aqui.

Respondeu a senhora.

Por azar estava eu sentada na “praça de alimentação” do aeroporto de Congonhas, em São Paulo, e tive que desembolsar R$ 6,20 para o tal café com leite. Se fosse num dos “shoppings” Graal de beira de estrada espalhados por todo o sudeste e onde somos “obrigados” a consumir quando viajamos de busão, economizaria R$ 0,30 em relação ao aeroporto. Sim, R$ 5,90 na beira da estrada. Em lanchonetes de fast food dá pra achar por R$ 2,80. Num bairro mais “simples”, como o cachoeirinha em Belo Horizonte, R$ 1,40. Na rua em frente aos pontos de ônibus das grandes capitais, alimentando trabalhadores que começam cedo, por R$ 1,00. A resposta da colega seria fundamental para eu saber qual quantia seria necessária para satisfazer seu pedido.

Pois bem, não havia tido coragem de pagar tal valor por um café com leite, de máquina… Ainda com o agravante de achar essa onda avalassadora do café expresso chata, gosto mesmo de um bom café coado à moda antiga, bem brasileirinho…

Pois bem, meu café da manhã hoje foi sem café. Nem leite. Foi com receio de imaginar o Brasil como o novo (velho) país dos novos ricos.

P.S: Ainda bem que não encontrei a pedinte dentro da sala de embarque – por lá, o “cafe latte” custa R$ 7,00…

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Adoecer? Só aos domingos…

O que pode significar tal bando de acometidos por enormes desgraças, vivendo toda sorte de dificuldades e deficiências enquanto outros tantos grupos gozam de facilidades, belezas e conforto em sua super vida? Sobre-vida. Sobreviver. O que será que diferencia tanto o destino dos seres humanos? Esse era meu pensamento na manhã e durante todo o dia em que decidi ir ao SUS para receber um diagnóstico para aquele meu olho que lacrimejava em conjuntivite. Me recusei a pagar R$ 250 por uma consulta e decidi procurar atendimento público.

Aqui (de onde escrevia), uma série ininterrupta de casos e acasos, em geral azares e por vezes, desgraças. Cheguei de manhã para pegar a senha para a tarde. E não há uma senha física, há que se esperar na fila até sim, receber a senha lá pela uma hora da tarde. Se quiser sair, terá que pedir para alguém guardar o seu lugar no front humano. Submetidos todos ao mesmo tratamento, há um ideal de igualdade, não há vips, no máximo, uma questão de vida ou morte.

No banco da fila, casos. Um ceramista desprotegido enquanto trabalhava teve seu olho atingido por uma sobra do material que despedaçava: perdeu a visão de um dos olhos na véspera de seu casamento, aos vinte anos de idade. A criança que, ao lado da mãe que tratava de embelezar suas unhas, se apoderou do alicate e o levou aos olhos. O pronto atendimento salvou sua visão. Na maioria dos casos, histórias de superação. Entendi essa palavra como o grande trunfo daqueles que têm percalços inimagináveis por alguém de vida tão suave como a minha. O que sinto é que há um mar de realidades das quais me salvaguardo por algum mistério do qual não fui informada mas que envolvem de uma suavidade todos os anos de minha vida. Minhas questões não desapareceram mas se tornaram menos reais a partir do momento que me deparo com o real da sobrevivência. Real este que não consegue me tocar através da mídia e de relatos mas que estão nos olhos daqueles que sentem o peso de uma realidade dura e compartilham com outrem carne a carne.

Trajetória

Terça-feira: nesse dia tentei, impacientemente, ser atendida. Quando cheguei ao posto pela manhã, só havia senha para a noite. E eu não entendi a dinâmica do faça-fila-entre-colegas-para-esperar-pela-senha-para-então-ter-seu-número-de-atendimento e poder fazer a contagem crescente para ser atendido. Saí meio escondida, recusei a fila e a espera. Busquei tratamentos naturais pela internet, lavei bastante o olho com soro e fiquei observando a reação do meu corpo.

Quarta-feira: a vermelhidão do olho se agravou, o inchaço das pálpebras surgiu e decidi pingar o colírio que o médico havia recomendado para minha amiga que havia ido ao oculista no domingo, no mesmo hospital que ontem me recusei a esperar na fila.

Quinta-feira: Acordei com uma mancha de sangue no canto do olho direito e temi que o uso do colírio sem a prescrição médica houvesse causado tal reação. Fiquei com medo, decidi ir acordar cedo e ir ao hospital no dia seguinte.

Sexta-feira: Vim preparada para esperar. Sem sofrimento, pressa ou recusa. Com a vista não se pode brincar: frase chave emitida pelos bancos das filas de espera do atendimento oftalmológico. A companheira de espera me disse: minha colega de trabalho queria viajar de férias e forjou uma conjuntivite derramando detergente de cozinha nos olhos. Sistema tão delicado e belo este, acho que não merece tamanha façanha…

Vira e mexe, me sentia culpada. Por estar ali, tomando o lugar de alguém mais necessitado que eu. Culpa classista. Via mais do que nunca e como sempre a divisão de classes coincidir com a divisão étnica. Eu era uma outsider ali. Tinha orgulho de ser como todos mas sabia que não dispúnhamos da mesma sorte.

Usei o banheiro, bem sujo; entrei para a sala de espera dentro do hospital, uma reforma enchia o ambiente de barulhos incomodantes; passei por um atendimento rápido e cordial, a mancha deve ter sido criada por algum impacto enquanto dormia e a conjuntivite já estava no fim, apenas um colírio hidratante foi recomendado, ou melhor, me foi fornecido. Foi o atestado do não era nada.

O sol ainda estava quente e deviam ser umas 15 horas da tarde quando me liberei. Havia chegado ao hospital às 9:00. Uma boa espera, nenhum trauma. Na contabilidade da experiência me senti mais humana e me vi mais humilde. E entendi que a maioria das pessoas só procura atendimento médico durante a semana, criando miragens nos finais de semana dos concorridos pontos de atendimento do SUS. SOS dominical SUS.

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Meu primeiro amor que não terminou

Como falar de amor? Como falar de amor e não falar de um relacionamento? Por quê é tão difícil ouvir das pessoas coisas boas sobre seus parceiros ao invés de ouvir as mazelas? Há sempre um porém, um mas, umas reticências que nos separam da pessoa que a gente ama. O que nos separa é algo externo ou somos nós mesmos tentando nos salvaguardar?

Pela quarta vez eu e meu ex-namorados nos separamos. E em cada uma dessas não faltou amor. E porquê nos separamos? Sim, é possível – e super saudável diga-se nas entrelinhas –  se separar com amor. A primeira vez foi na Costa Rica. Ele estava seguindo para o Canadá e eu para o Brasil. No mesmo dia, no mesmo aeroporto. Era o final do começo do amor. Paixão louca, irrestrita, ardente, irrevogável, comprometida. Como toda boa despedida, esperava o frisson do sentimento que há por vir. Os últimos olhares no aeroporto, as viradas de pescoço, possíveis presentes, promessas de amor, idéias sobre o retorno.

Minha última despedida de um homem foi de um amigo que me encontrou no aeroporto de Londres para me entregar uma encomenda para seu amigo no Brasil. Apesar da falta de romance, rolou um selinho selando nosso amor, uma taça de vinho e o aconchego de ter alguém para olhar pra trás na hora de entrar na sala de embarque.

Em terras calientes o drama foi proporcional. Ele foi até o guichê da sua companhia, do outro lado do aeroporto, tentar despachar sua bagagem para que ficássemos mais à vontade. Demorou e eu nervosa pois a ampulheta da nossa despedida corria  e eu queria mais e mais e mais, como em toda despedida. Eis que ele chega esbaforido com a notícia de que havia confundido o horário do seu vôo e acabara de perdê-lo. Bom, esse foi o final de uma romântica despedida. Enervecido, me entregou um presente – uma pulseira Huichol -, abraçou e beijou e tals mas, sua embriaguez pelo erro cometido acabou com nossa triunfal despedida.

Quatro meses depois, foi a vez da gélida definitiva separação. A paixão louca, irrestrita, ardente, irrevogável, comprometida ficou em escanteio no esbranquiçado e silencioso Canadá. Passados dois meses, decidimos seguir rumos distintos. E demoramos 1 mês para efetuar a quebra de fato. Mês esse em que fuçamos, ruminamos, digerimos, regurgitamos e tentamos entender o que nos havia separado. E só conseguimos construir mais ligações, mais amor e mais admiração mútua.

Fomos, pela segunda vez, embora no mesmo dia, ele para a Costa Rica e eu para Nova Iorque. Lá pelas 4 da manhã, desci com ele até a gélida e esbranquiçada rua de Montreal e voltei para o quarto. Registrei as sombras na parede daquilo que a luz iluminava. Olhei para o travesseiro vazio. Dormi e acordei com o sentimento de que de repente, eu estava sozinha. E chorei.

Fui para a estação de trem. Durante as 11 horas de viagem até NY, entre cochilos e mordidas no sanduíche que ele havia me preparado (e que ele também comia no avião), fui despejando pela paisagem pedaços do passado que deixava para trás.

Enquanto tentava marcar um encontro comigo mesma na Índia, recebo a notícia de que ele estava indo para o Brasil. E, quando começava a curtir meu encontro comigo mesma, fui chamada a acompanhar meu pai numa cirurgia. Ao chegar a calmaria, nos encontramos, pela terceira vez, agora no extremo sul do continente americano.

Ele foi até Belo Horizonte, e ficamos no sitio dos meus pais. Como um grande amigo, nosso entrosamento é imediato. E como bons amantes, nossa amizade se colore dos mais diversos tons. O respeito que exala entre as diferenças que emanamos nos unem de forma irrestrita e mágica. A ponto de abrir espaço para um ex namorado ser recebido com honras de futuro marido.

Uma semana se passou e ambos nos separamos na rodoviária de Belo Horizonte. Ele indo para o Rio de Janeiro e eu para São Paulo. Dessa vez eu o presenteei com um mini doce-de-leite, e fui escutando músicas românticas no ônibus para que meus sentimentos permanecessem mais tempo em minha pele.

Passados alguns dias, rumei ao Rio de Janeiro para finalizar o início de minha mudança para tal estado. E, usando desculpas profissionais, boicotei qualquer tipo de resquício de romance, levantando o assumir da separação e da nova configuração entre nós. Passamos a tarde e o começo da noite juntos, com amigos, na praia, como amigos. Pegamos o mesmo taxi, ele para Santa Tereza e eu para a rodoviária.

Eu no Brasil e ele em Israel. Ambos voltamos para nossos países. A mala cheia de corações sarados, a mente confiante na possibilidade de ter um relacionamento bom, grandioso, elaborado e respeitoso, o coração cheio de amor pelo que o outro é, aberto à separação e ao reencontro. Entre nós não há lugar para a culpa danosa, para a reclamação, talvez exatamente por nos respeitarmos pelo que somos em exatidão que nossos caminhos nos separaram. Nenhum dos dois é capaz de pedir ao outro que seja o que não se é. Nenhum de nós quis que o outro abrisse mão de seus sentimentos e dúvidas. É porque nos amamos de verdade que nos separamos e nos reencontramos. Esse é o meu primeiro caso de amor que terminou sem fim.

 

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A primeira vez que rezei na vida.

Nunca havia rezado de verdade em minha vida. Durante minha infância fiz primeira comunhão e lembro-me de ser uma boa aluna, de até ler textos durante as missas. O frisson de fazer algo em público sempre me atraiu, a tensão durante os minutos em que se quer falar mas não se tem coragem, a brincadeira com o próprio medo, falo não falo, em que momento entro?, até a ação em si, que é emoção pura, coração, presença. Passaram-se alguns domingos de missas, alguns pai nossos antes de dormir, o sinal da cruz antes de passar em frente a qualquer igreja, a oração a alguma santa que fazia antes de dirigir, até que todos esses processos, rituais ou simplesmente rezas sumissem do meu dia a dia.

Estava eu em minhas férias espirituais em uma comunidade na Costa Rica, indagando-me sobre minha incapacidade de rezar. Pensava, sou tão naturalmente abençoada, tenho tudo que preciso, o que mais  devo pedir?…  E o pior, a quem?… Foi durante um dos discursos de Osho que escutei durante um processo que boooooom, ecoou longe e fez lágrimas caírem imediatamente. Instantâneas. To pray is to be grateful. O ego era demasiado grande para permitir um ato de humildade.

A cada dia que passava por lá, a natureza fazia mais parte da minha vida, me assustava cada vez menos e gerava uma sensação de agradecimento por tudo que estava vivendo. Sentia a gratitude de estar bem onde estava. Eu, que apesar de transpirar calma exterior sentia constantemente a tal da insatisfação, que por um lado impulsiona novas ações e por outro faz das nossas vidas uma interminável infelicidade.

Em meio aos processos que mergulhei durante os dois meses que fiquei por lá chegou a tal da Cura, 3 noites de Ayauasca, 6 copos por noite, estrutura do Santo Daime (mulheres de um lado, homens de outro, todos de branco, canções do hinário). Estava eu em tal comunidade falando em inglês noite e dia, cercada de estrangeiros e de repente me sento em roda a cantar músicas em português? E o pior, falando de Maria, de fé, de Jesus, de amor, de confiança? Uma noite, duas noites, na terceira, boooooom, juro, estava com o punho cerrado cantando confia, confia, confia.

Foi a primeira vez que rezei na vida. O coração aberto pelo divino chá me fez ver a beleza daquelas palavras e a profundidade da palavra em si. Desses ecos de vibração que emanamos, ecos de intenção, que ao serem entoados, se tornam eternos. Humildemente entendi que estava pedindo, dando, agradecendo, rezando pelo amor, pela vida, pelos humanos, pelo divino. Wow, primeira vez que rezei. Foi deep.

Inaugurou-se então esse novo espaço na minha vida para os rituais, para a minha voz interior expressar amor próprio e aos outros, respeito próprio e aos demais. Estava feliz com minha iniciação e de certa forma confiante. Outros processos vieram e cada vez abro mais uma brecha em direção à potencia do universo. E que potência… Capaz de jogar fora até mesmo os novos conceitos que pouco a pouco vão substituindo os antigos. Até mesmo os novos, os espirituais, os amorosos que em teoria são mais valiosos… e reconstroem nosso ego, vem a vida e, boooooom novamente.

Brasil, Peru, México, Guatemala, Costa Rica, Brasil, Canadá, NY, México. Apenas quatro meses apos ter ido ao México lá estava eu novamente para participar de uma cerimônia indígena. Durante a preparação para a viagem fiz rezas para as quatro direções com minhas intenções, foi um lindo processo em que refiz alguns caminhos da minha história, como pedir perdão aos meus avós por julgamentos que havia em algum momento feito, ligando os elementos da natureza e seus poderes sobre a terra e os humanos, com velas, tabaco, fogo e muita emoção por estar me permitindo tocar tudo aquilo.

Eram quatro noites de danças e cantos, quase sem comer, com dois temascales diários, 140 mulheres, lua cheia, full Power! Cada dia que passava me sentia mais parte do processo, com mais envolvimento, mais segura, relembrando as intenções que levei até lá. Na terceira noite, enquanto dançávamos, de repente vi uma luz de lanterna e um homem correndo apressado, até que ele soltou tiros no ar e mandou todas nós deitarmos no chão. Sim, era um assalto e estávamos sendo feitas reféns. Ficamos cerca de 3 horas reféns de 8 homens armados e, boooooom, nunca rezei tão profundamente na vida…

Toda a minha coragem, todas as minhas intenções, toda a inquietude, os desejos, os anseios, as infelicidades, tudo foi por água abaixo e eu só queria estar viva. Como nunca antes havia sentido. Foi minha primeira experiência com o desespero, com o medo real da morte, da dor, do abuso, da polaridade no mundo. Foi minha primeira experiência real de valoração da vida. Entendi pela primeira vez ao menos uma das profundidades da violência em que o mundo está imerso atualmente. Vivenciei na pele porque muitas famílias de judeus não reagiam durante os aprisionamentos. Senti pela primeira vez na carne que éramos um corpo só que pulsava sobre a terra, que respirava junto, formando um manto branco sobre a superfície que então estava rodeada por sombra. Nem deles consegui me afastar, eu rezava por eles, rezava para que suas ações fossem o menos danosa para si mesmos, que eles pudessem curar suas ações em vida.

Pela primeira vez não enfrentei uma situação em minha vida. Não tinha coragem de levantar a cabeça e olhar o panorama ao redor, seus passos, suas ações, seus corpos. Somente rezava. Naquele momento não havia dúvida, conceito, religião, indagação. Eu apenas rezava. E novamente, pela primeira vez.

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Mudei mas não cortei o cabelo

A última vez que eu prometi não cortar mais meu cabelo drasticamente e sozinha tinha recém completado meus 30 anos. Lá se foram mais um bom par de anos para que ele voltasse a balançar solto – isso das raras vezes em que não estava preso no corriqueiro coque ou rabo-de-cavalo. Estava solteira e com a sensação constante de um peso de mochila nas costas. Nem eu me segurava. E pois pronto, lá se quebrou a promessa e se foram mais centímetros de madeixas.

Estava eu num quartinho sem vergonha de hotel no sul de Londres, após uma chegada não muito calorosa, um fechamento de malas e venda de restos que não agüentariam esperar pelo meu retorno, romances fortes e reencontros que passei emocionalmente quase desapercebida e um sentimento de terra que se assenta no chão depois de passado o tufão. P-R-E-C-I-S-A-V-A cortar meu cabelo.

Era a fase “Não fala comigo”. Nem vem. E se vier, que fale algo que me interesse. Assim, com aquele ato, eu já cortei metade do planeta masculino que busca mulheres de beleza natural. Nunca fui muito boa nisso.

A primeira vez que cortei drasticamente o dito cujo foi contra minha vontade. Devia ter lá pelos 11 anos e lembro da minha mãe me obrigando a cortar. Eu sempre fiquei charmosa com o cabelo curto mas passei a analisar o motivo de eu querer cortar um grande pedaço da minha feminilidade com esse ato. Ou que tipo de auto-punição eu me infringia com isso. Tem gente que corta os pulsos num acesso de raiva, eu cortava o cabelo.

E a aventura não terminou aí. Passadas umas semanas decidi ir a um salão. Em Londres. Rodei o Soho mas gente, salão moderno pra mim não dá. Nem em SP nem em lugar nenhum. Me põe numa barbearia ou me booka pra um trabalho de styling que um amigo maquiador em 5 minutos dá um jeitinho e eu ainda saio com aquela cara ½ bonita / ½ moderna, que era a linha que então fazia. Resolvi radicalizar e passear pelos salões de Hackney. Ia vendo as mulatas com as cadeiras redondas, cheias de si e de tranças no cabelo e aquele jeitinho maroto que me lembrava o Brasil. Pronto, achei meu lugar.

Eu era o oposto de qualquer pessoa que freqüentava tais cadeiras. Se as negras possuem muito cabelo eu era quase uma careca, ela não sabia nem como pegar em minhas madeixas. E para falar inglês na minha primeira semana com a turma de Hackney. Esquece, vai aí.

E de lá pra cá resolvi decidir, já que prometer não fez muita diferença, deixar meu cabelo o mais natural possível. Sem tinturas, sem radicalismos. E não é que a minha vida mudou de verdade!?!

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Tortillando

Foi apenas depois de ler um comentário no facebook do Alex, meu amigo que está na Espanha, que me deparei com a notícia de que o vulcão de fogo, o Pacaya, vizinho aqui de Antigua, havia entrado em erupção. Tudo bem, eram 6 da manhã ainda e inclusive um par de turistas esperava o shuttle para então não conseguir chegar até o dito cujo.

Havia chegado perto do nervosinho quando então ele ainda estava calmo há 5 dias atrás, quando fui até Ciudad Vieja, primeira capital da Guatemala, a aprender a tortillar com a mãe do Luís, guardião do albergue de Antigua, segunda capital do país, a Gladys.

Com uma destreza que só as pessoas muito seguras de sua vida e suas escolhas e quase de seu destino têm, me mostrou todo o processo de preparação da massa da tortilla: deixar os grãos de milho ferverem com água de cal (isso, pasmem, não fazia idéia), quando estiverem mais tenros mas não muito cozidos, levar a moer com seu tio (ela já não moi mais no muque, cada vasilhame com mais ou menos 4 quilos de grãos é massarocado por meros 1 quetzal, 0,20 centavos de real), ir adicionando água caso ela se resseque e umas poucas doses da famosa mão na massa.

A tortilla é a base da massa das maiores delícias da culinária de rua daqui: a tortilla propriamente, os tacos, os tamales e lá pelo México, minhas favoritas, as tlayudas. Alem disso, tortillar é um verbo. No dicionário callejero, eu o descrevo como:

  1. Ato de pegar uma certa quantidade de massa em formato já um pouco arredondado e bater entre as palmas da mão até e com o intuito de transformá-la num círculo homogêneo e fino;
  2. Tentar tirar um samba ou melhor, uma salsa com as palmas da mão, com direito a todas as fases amorosas: o apego melado, um ritmo já mais cadenciado, as brigas repetidas e o final desenlace do desapego. Já pro fogo, ou melhor, pro comal.
  3. Terapia entre mulheres cuja ação física de bater na massa ajuda a desbloquear tensões enquanto ritma a conversa entre as cumadres.

Gladys aluga um barracão onde suas duas filhas trabalham com mais uma funcionária enquanto ela tortilla na sua casa com sua nora. Fomos de um lado a outro, meros 3 quarteirões. Ela é uma grande maestra. Ia guardando minhas tortillas para que no final acompanhássemos meu desenvolvimento, sublime! Foi me dando exemplos de pessoas que demoraram muito a aprender; ia elogiando minhas façanhas; colocou sua neta de 6 anos para me ensinar a tortillar; se por acaso eu travasse, refizesse uma, duas, três vezes a tal batedeira e nada, ela me aconselhava a largar aquele monte de massa e pegar uma porção fresca. Era uma lição.

E com uma gentileza, uma delicadeza e uma simplicidade que só a vida mesmo… Então, filosofias a parte, ganhei um bom resumo de sua vida, trocamos confidências não só femininas mas humanas, conheci uma penca de gente que ia lá a comprar e ainda filei o almoço. Eu, ela, suas duas filhas, a funcionária, seu marido, seu filho, seus dois netos, as galinhas e a pata com uns 5 patinhos rodando entre nós. Comi minhas tortillas com o feijão caseiro e os chicharrones de pollo, que são como a pele frita em que ela vai tirando a gordura e guardando para a posteridade. Não tinha como negar o frango, mas isso eu levo com tranquilidade. Alem da água de Pepsi, sim, eles chamavam refrigerante de água de coca, de fanta, tem descrição mais naif que essa???

Pois foi entre os doces convites para me hospedar em sua casa por um par de noites caso eu voltasse para a Guatemala que me inteirei do tal do vulcão de água que cercava o povoado. Foi ele que entrou em erupção em 1541 e inundou toda a então capital. Resolvi voltar a pé ao final da jornada e observar o caminho. Ia criando paisagens imaginárias e uma delas era o tal do vulcão jorrando informação. Sou apaixonada pelas grandes manifestações da natureza como vulcões, tsunamis, tornados, acho muito fantástico, como das primeiras vezes que se vê uma explosão de fogos, como o primeiro mergulho, como um grande espetáculo que emociona o coração, nos faz desaparecer, nos aproxima do tal Deus…

Como o sonho passa há algumas quadras da realidade… Cheguei hoje à capital e tinha uma camada negra sobre o solo, estavam recapeando o asfalto mas não sabia dizer por qual motivo havia subido para a calçada. Bem, chovia. Foi quando subi no busão e desci há meia hora dali que percebi que a tal lama seguia sujando meu já quase imprestável tênis e atrapalhando as rodinhas da minha bagagem e bom, perguntei para a senhora ao meu lado, quê que estava acontecendo com a cidade. Eram as cinzas do vulcão.

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Noite a La Mexicana.

Posso dizer que já me havia dado por satisfeita com meu dia aquele dia. Eram 10 horas da noite e estava sentada na rodoviária editando vídeo esperando soar as batidas das 23:30 para subir no busão rumo a Textlan. Já havíamos feito um delicioso mergulho com tanque de oxigênio em Huatulco, pegamos duas caronas – uma de fusca até o cruzamento da estrada e outra num carro super confortável com ar condicionado, que nos fez economizar cerca de 140 pesos cada uma fora o cafezinho de beira da estrada que os cavalheiros nos pagaram. Nesse momento havíamos decidido economizar o dinheiro do hotel viajando à noite de busão segunda classe. Tudo econômico e aventureiro.

Talita foi dar uma volta e veio cheia de novidades, estava havendo uma quermesse em comemoração ao dia dos professores com comes e bebes e dança e gente welcoming. As mulheres estavam lindas com trajes típicos, os homens nos ofereciam cerveja sem parar e ainda tinha o tal pratinho de comida de festa que aqui na verdade mais se parece uma quentinha. Comecei a filmar o baile e achei ótimo nosso fim de noite. Até que, prosa vai, prosa vem, juntou uma turma que nos contou sobre o próximo baile num povoado ao lado, nos convenceu a ficar oferecendo casa, trajes para o evento, bom papo, banho, o que fosse. Olhamos uma pra outra e bom, vamos!

Ficamos na casa da Carmem e do Santiago. A essa altura já não tinha mais bateria na filmadora, a câmera havia caído na água durante o passeio de barco e restava um naco de bateria no celular. Carmem bordava e Santiago era professor de educação física. Tinham 3 filhas, uma de uns 12 anos, a de 16 que desde os 13, quando engravidou, foi viver com a família do marido e a Janete, de 18 anos, com quem fomos ao baile.

Estávamos em Juchitán e em maio é o mês de “Las Velas”, festas em que se homenageiam diversos santos. Originalmente as festas duravam toda a noite como forma de demonstrar lealdade a tais santos. Hoje comemora-se em grandes festas em que cada família possui uma área reservada e tal reunião fortalece o vinculo entre elas.  As pessoas são recebidas com bebidas, comida e cadeiras para assistir aos shows de musica regional. As mulheres devem ir de traje de gala, assim que vestimos os nossos e fomos.

Foi fantástica. Confesso que nunca havia visto nada igual. A cada família que porventura nos amigávamos, éramos recebidas com muita comida e bebida. Entre os povos da região a comida é um símbolo de união. Como explicou Rigoberta Menchú em seu livro auto-biográfico (que infelizmente li em inglês…): “We only trust people who eat what we eat”. Havia momentos em que estava com 3 cervejas na mão – cada um fazia questão de que tomasse a sua cerveja…

//Acesse e assista//http://www.facebook.com/thaismol?v=app_2392950137#!/video/video.php?v=430058625902

Dancei pela primeira vez a tal da salsa, junto, separado, com homens, com mulheres. Podia ficar horas sentada apenas observando os trajes femininos, uma riqueza de cores, detalhes e feminilidade que nunca havia presenciado. Que mulheres divinas!

Lá pela madrugada começou a chover, pelo segundo dia, e voltamos para casa. Chegamos lá e dormimos no colchão de casal que estava na varanda. Todos dormiam por lá devido ao calor, em redes ou colchões. A casa possuía apenas um dormitório, a cozinha era integrada à varanda onde também Carmem trabalhava bordando e havia um generoso quintal na frente e uma vizinha muito simpática a qual Carmem orgulhosamente nos apresentou. Não havia água encanada. Pela manhã, era um domingo e Santiago aproveitava para trabalhar no taxi de seu primo, fomos para a rodoviária. Eram 7 horas e Santiago gentilmente nos levou até o local, falando sobre humanidade e generosidades. Poder confiar, conviver e compartilhar com as pessoas de forma sincera é uma das coisas que mais me fazem felizes nessa vida. Saí de lá com o peito cheio, emocionada  e segura de que somos sós mas não estamos sós.

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